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“Trabalhador será maior prejudicado com reforma previdenciária”, alerta especialista

O vice-presidente da Comissão de Direito Previdenciário da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Mato Grosso (OAB-MT), Jonas Albert Schmidt, pontua diversas questões que ainda trazem dúvidas à sociedade quanto à reforma previdenciária, proposta pelo governo federal.

Jonas, que atua como advogado previdenciarista desde 2003, é mestre em Política Social pela UFMT com intercâmbio na Universidade de Coimbra/Portugal, cuja pesquisa foi “A estrutura de financiamento e repartição dos recursos da previdência social no Brasil e em Portugal”.

Com um currículo extenso, Jonas é membro da Frente Legislativa criada pela Comissão Nacional de Direito Previdenciário do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, a qual elaborou emendas supressivas e substitutivas à PEC 287/2016.

Ele destaca que “a reforma pretendida pelo governo federal tem como objetivo principal dificultar o acesso aos benefícios e retardar sua concessão. Alguns pontos em destaque na PEC 287/2016”.

 

Confira a íntegra da entrevista:

Foco Cidade: Sobre a reforma previdenciária, quais são as principais mudanças?

Jonas Albert Schmidt : A reforma pretendida pelo governo federal tem como objetivo principal dificultar o acesso aos benefícios e retardar sua concessão. Alguns pontos em destaque na PEC 287/2016: Exigência de idade mínima para aposentadoria a partir dos 65 (sessenta e cinco) anos para homens e mulheres, igualando os gêneros; 49 (quarenta e nove) anos de tempo de contribuição para ter acesso à aposentadoria integral; Equiparação do trabalhador(a) urbano e rural; Pensão por morte dividida em cotas a partir de 50%, ou seja, redução para metade do benefício caso houver apenas um dependente; Fim das regras de transição das Emendas 20/98, 41/03 e 47/05; Impede a cumulação de aposentadoria e pensão por morte; Elevação da idade para o recebimento do benefício assistencial (LOAS) para 70 anos; Fim da aposentadoria dos professores, dentre outras medidas de austeridade.

Foco Cidade: Quem será afetado?

Jonas Albert Schmidt : O principal afetado, mais uma vez, é o trabalhador. A PEC 287/2016 vai alcançar os trabalhadores urbanos e rurais, servidores públicos e da iniciativa privada. Infelizmente, as forças armadas ficaram de fora da reforma, onde de fato existem disparidades em relação aos demais trabalhadores.

Foco Cidade: Como o senhor avalia a elevação da idade para 65 anos?

Jonas Albert Schmidt : Historicamente no Brasil, quando se faz uma reforma na previdência, utiliza-se exemplos de outros países. Nas exposições dos motivos da reforma, uma expressão muito utilizada é “padrões internacionais”. Contudo, a realidade brasileira não pode ser equiparada a países como a França, Dinamarca dentre outros. Sempre dou o seguinte exemplo: Na França, um jovem francês termina seus estudos de graduação, já faz um mestrado integrado, que é muito comum na Europa, e vai para o mercado de trabalho aos 25 anos em diante. Considerando essa idade, certamente aposentará aos 65, 67 anos com tempo de contribuição que soma-se em pouco mais de 30 anos. Contudo, a realidade brasileira é outra. Aqui um trabalhador começa aos 14 anos, senão antes. Exigir que se aposente aos 65 é uma grande injustiça, vai obrigar a uma eterna contribuição para uma aposentadoria futura e incerta. Sem contar o desemprego. Ao passo que se considerar a igualdade de gêneros para a idade mínima, a injustiça é redobrada. Por mais que as mulheres estão em ascensão no mercado de trabalho, ainda é uma realidade cruel, pois seus salários são inferiores e culturalmente é aceito que são “obrigações” exclusivamente femininas os cuidados com casa e filhos. Portanto, mulheres tem dupla, tripla jornada laboral. É injusto igualar enquanto a sociedade não trata de fato as mulheres de forma igual em relação aos homens. É querer tratar com igualdade algo que é tão desigual.

Foco Cidade: Haverá uma regra de transição para não prejudicar quem está perto da aposentadoria?

Jonas Albert Schmidt : A reforma por si só, da forma que foi posta, já é prejudicial ao trabalhador e trabalhadora. Mas o Governo propôs uma regra de transição. Essa regra estipula que o homem com 50 anos e a mulher com 45 anos de idade, ou mais, na data da promulgação da Emenda Constitucional poderão aposentar-se pelas regras atuais desde que cumpram um pedágio de 50% do tempo que faltaria. Aos servidores públicos ainda é exigido 20 anos de serviço público. Com isso, se uma mulher, na data da promulgação da Emenda tiver  20 anos de contribuição, ela teria que contribuir o tempo mínimo de 30 anos, contudo, com a regra de transição o pedágio é sobre o tempo que faltaria, ou seja, em vez de 10 anos, terá que contribuir por mais 15.

Foco Cidade: Como o senhor analisa o fato do governo mexer no cálculo, pressionando o trabalhador a contribuir mais tempo?

Jonas Albert Schmidt : Quando se muda um sistema de previdência para dificultar o alcance dos benefícios, e pior, reduzindo seu valor, a ideia é fazer caixa. A previdência social é o maio fundo público que existe no Brasil, assim como em outros países. Para entender melhor, preciso afirmar primeiro que a Previdência Social brasileira é superavitária. Ao contrário que sempre se afirmou, em ser deficitária, a previdência acumula saldos positivos ano após ano. No último fluxograma de caixa do INSS, disponível no site oficial, mostra que em 2015 a “sobra” foi de aproximadamente 11 bilhões de reais. Em outros anos esse saldo foi maior, mas devido ao desemprego e, com isso, um número menor de contribuintes no sistema, esse saldo diminuiu. As contas que o governo apresenta não são inverdades, mas são incompletas. O art. 195 da Constituição estipula a base de financiamento da seguridade social, que é muito ampla. Contudo, o governo apresenta os valores arrecadados das contribuições diretas dos empregados e empregadores, e por outro lado, os valores gastos com benefícios, inclusive os que não têm natureza previdenciária. Certamente essa conta irá indicar déficit. Entretanto, se somarmos toda a base de financiamento e contrapor os “gastos”, teremos o superávit que o governo, não somente este, mas os antecessores também, esconde. Qual a lógica disso? A maioria dos brasileiros não sabe o que é a DRU. DRU é a Desvinculação de Receitas da União, é o que o governo pode usar para o que bem entender. Ela existe desde 1994, criada incialmente como provisória e se estende até hoje. O atual governo prorrogou a DRU até 2013, elevando de 20% para 30% o total da desvinculação. Ou seja, quase um terço das arrecadações da seguridade social é desvinculada para ser usada para outros fins que não o pagamento de benefícios. Se é deficitária, porque desvincula essa generosa fatia? Esse é um ponto que o governo não comenta, pois cai por terra o discurso do déficit.

Foco Cidade:  O que muda para os funcionários públicos?

Jonas Albert Schmidt : A previdência do servidor público vem sofrendo reformas paulatinas desde 1998 com a Emenda Constitucional n. 20 daquele ano. Houve depois outras emendas que reformaram o sistema. Em 2003 com a Emenda 41, em 2005 com a 47. Em 1998 o professor universitário deixou de ter acesso a aposentadoria que chamamos de “especial do professor”. Em 2003 a paridade dos reajustes dos benefícios em relação a quem está na atividade virou regra de transição, sendo que em 2005, com a EC n. 47, a paridade tornou-se mais inacessível. Com a atual proposta de reforma, o governo que equiparar as regras do setor público e privado, impor o teto do regime geral para os servidores, com isso serão obrigados a contribuir para um regime complementar, o qual ficará sob gestão de instituições financeiras, como ocorre desde 2012 com os servidores públicos federais. A proposta também retira a possibilidade de aposentadoria do professor com redução de cinco anos na idade e tempo de contribuição como é atualmente. O professor no Brasil já é pouco valorizado, seus salários são baixos, sendo que é uma profissão que exige jornada extra. Um professor(a) prepara aulas, estuda, leciona, corrige provas, enfim, extrapola os limites de sua carga horária paga. É uma profissão desgastante, insalubre. Exigir que contribuam e aposentem-se com a mesma idade dos demais trabalhadores será uma grande injustiça com a categoria. Mas em termos gerais, a proposta é igualar servidores públicos e trabalhadores da iniciativa privada.

Foco Cidade: Qual a diferença de regras entre homens e mulheres?

Jonas Albert Schmidt : Atualmente mulheres contribuem e necessitam de idade mínima em cinco anos a menos que os homens, dentro das várias regras existentes. Com a proposta governista, isso acabaria, ou seja, as regras serão iguais. Como já comentei antes, é uma injustiça com as mulheres, pois querem igualar aos homens na concessão dos benefícios previdenciários, mas a sociedade ainda não igualou os gêneros.

Foco Cidade: Como ficam as aposentadorias chamadas de “regimes especiais”?

Jonas Albert Schmidt : As atividades exercidas que prejudicam a saúde e a integridade física já tem previsão de aposentadoria especial desde 2005, contudo nunca foi regulamentada por lei complementar como exige a Emenda Constitucional n. 47. A proposta do governo mantem essa modalidade, mas com regras que exigem tempo maior de contribuição e idade, ou seja, exigir que o trabalhador nestas condições prolongue a exposição aos agentes de risco para se aposentar. A proposta também deixa para a lei complementar regular a matéria, considerando que a atual regra existe há 12 anos e ainda não regulamentaram, será outra modalidade de aposentadoria que se transformará em “letra morta” na Constituição.

Foco Cidade: Haverá alteração nas pensões por morte?

Jonas Albert Schmidt : No Regime Geral (INSS) já alteraram, em 2012, o tempo de concessão do benefício, o qual considera a idade do(a) pensionista. Com a reforma trazida pela PEC 287/2016, o que muda é o valor do benefício. A pensão será equivalente a uma cota familiar de 50%, acrescida de cotas individuais de 10% por dependente, até o limite de 100%. Caso o segurado deixar apenas um(a) dependente, a pensão por morte será a metade do benefício.

Foco Cidade: E os trabalhadores rurais?

Jonas Albert Schmidt : Atualmente os trabalhadores rurais são chamados de “segurados especiais”, pois eles não contribuem diretamente para o sistema. Com a reforma, querem igualar as regras com a dos trabalhadores urbanos. Isso é um gravíssimo erro. O trabalho no campo é muito mais penoso, exigir que uma mulher atue até os 65 anos, com tempo mínimo de contribuição direta para aposentar é crueldade. A realidade brasileira indica que a maior parcela destes trabalhadores atuam em situação de “agricultura familiar”, nem sempre existe uma “safra” a ser comercializada, em dados momentos é uma agricultura de subsistência. Então exigir tempo mínimo de contribuição, somados a idade mínima, é considerar inatingível os benefícios.

Foco Cidade: E a desvinculação do piso da Previdência do salário mínimo?

Jonas Albert Schmidt : A pensão por morte deixa de ser vinculada ao mínimo, já que começa com 50% do benefício. Isso significa que um(a) pensionista pode receber apenas meio salário mínimo.

Foco Cidade: Como será o fim da paridade entre servidores ativos e inativos?

Jonas Albert Schmidt : Como já comentei, a paridade já não é regra, e sim exceção desde 2003. Com a reforma, o governo quer retirar essas regras de transição existentes e que ainda possibilitam a concessão de benefícios com direito a paridade.

Foco Cidade:  Sabe-se que a reforma tem como fundamento o deficit da previdência. O senhor conceitua esse modelo como falido?

Jonas Albert Schmidt : No comentário que fiz sobre o sobre o tempo de contribuição, falei que o sistema é superavitário, como de fato é. A Seguridade Social, formada pelo tripé: previdência, assistência e saúde, é a maior política social que o país possui. Não é um sistema falido, é um sistema necessário e deve ser visto por outro viés. A própria reforma deveria ser tratada de outra forma. Não é cortando benefícios ou dificultando o acesso a eles, mas sim reestruturar o financiamento. Acabar com a DRU, com as exonerações fiscais, cobrar as dívidas bilionárias das empresas com relação ao INSS. O sistema, mesmo com todos esse problemas que acabei de citar, é superavitário, mas mesmo assim querem fazer o trabalhador se exaurir para contribuir com um sistema que arrecada dinheiro para o governo e cria superávit primário.

Foco Cidade: As mudanças vêm em um momento correto ou deveriam ter ocorrido anteriormente?

Jonas Albert Schmidt : A resposta desta pergunta está acima. Precisamos fortalecer a previdência, não precariza-la e torna-la fonte inesgotável de recursos para o governo. A previdência é do trabalhador. A reforma como está posta tem objetivos pontuais: dificultar o acesso aos benefícios, prolongar a concessão dos mesmos, criar superávit primário nas contas do governo e direcionar uma fatia generosa destes recursos para o mercado financeiro altamente especulativo. Os regimes complementares dos servidores públicos, que fatalmente serão criados, serão geridos pelo mercado financeiro que não dará garantia nenhuma no futuro, pois o mercado só é garantidor de lucros para as grandes instituições financeiras. Mercado não garante direitos sociais.

Foco Cidade: Com toda inovação, quais os reflexos para a previdência privada?

Jonas Albert Schmidt : Previdência privada é produto bancário. Como acabei de falar, está nas mãos dos bancos, os quais não dão garantia de pagamento futuro. Já vimos bancos falirem e seus “investidores” verem seus recursos evaporarem. Previdência é um direito social, não pode ser tratada como mercadoria de livre negociação no mercado especulativo.

Foco Cidade: Enquanto vice-presidente da Comissão de Direito Previdenciário da OAB-MT, porque causa tanta polêmica a PEC 287/2016?

Jonas Albert Schmidt : Por todos esses fatores que mencionei até agora. O Estado brasileiro está direcionando os direitos sociais para o mercado especulativo. São sinais de privatização do sistema. Exigir que um trabalhador contribua por 49 anos para obter uma aposentadoria integral é exigir a exaustão, é obrigar a uma eterna contribuição para o recebimento de um benefício futuro e incerto. Fala-se muito em expectativa de vida, mas temos diferenças regionais gritantes. A expectativa de vida no sul e sudeste é diferente do norte e nordeste, que é diferente do centro-oeste. Exigir que um trabalhador do campo no semiárido brasileiro contribua por 25 anos e tenha idade mínima de 65 para aposentar, é o mesmo que dizer que ele não vai aposentar. Compara-se a realidade brasileira com outros países, isso é um absurdo. Temos que exigir uma ampla e irrestrita discussão com a sociedade. Essa PEC não pode ser aprovada em alguns meses, como quer o governo, pois irá afetar a vida de muitas gerações. O sistema não é falido, ao contrário. Foi uma das maiores conquistas na Constituinte de 1988, naquele momento de redemocratização do país. O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, juntamente com as Seccionais de todo o país e muitas outras entidades e representantes de classe, estão atuando para propor uma reforma que não atinja drasticamente o trabalhador e a trabalhadora da forma que o governo pretende. Previdência é direito social, não pode se tornar inatingível e tão pouco virar mercadoria.